O pessimismo e a poesia

“O trabalho de assassinato, pois, é do que se trata, em breve chegará ao fim. Quando se sufoca a voz do poeta, a história perde o sentido e a ameaça escatológica irrompe como nova e terrível aurora nas consciências humanas. Somente agora, à beira do abismo, é possível compreender que “tudo o que nos ensinam é falso”.  A prova dessa afirmação devastadora está aí, visível, todo dia em toda parte: no campo de batalha, no laboratório, na fábrica, na imprensa, na escola, na igreja. Vivemos inteiramente no passado, alimentados por pensamentos estéreis, crenças obsoletas, ciências mortas. E é o passado que nos devora, não o futuro. O futuro sempre foi e sempre será do poeta.”

– Trecho de A hora dos assassinos – um estudo sobre Rimbaud (L&PM), de Henry Miller

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A hora dos assassinos

“Rimbaud foi um suicida vivo”. O diagnóstico de Henry Miller sobre o poeta do século XIX faz jus ao jovem inquieto que começou aos dez anos na literatura, viveu uma vida de excessos e morreu também muito precocemente, aos 37 anos.

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A Hora dos Assassinos, publicado em 1956, é mais que um estudo crítico de Miller sobre o francês. É uma identificação. Arthur Rimbaud foi um sonhador. Um rebelde boêmio que se entregou à vida e com ela se decepcionou. Viajou pelo mundo sob efeito de absinto e haxixe, virou traficante de armas, passou Uma Temporada no Inferno e retornou para nos narrar a experiência.

Miller, por sua vez, era subversivo e foi enfaticamente tachado de pornográfico. Trópico de Câncer, sua obra mais famosa, de 1934, foi banida em diversos países sob a acusação de obscenidade. Foi, em muitos sentidos, tão sonhador quanto seu ídolo e também experimentou o desconcerto com o mundo. O americano conheceu os versos de Rimbaud quando já adulto, e os recebeu com “o impacto de um tiro”.

O livro, que nasceu de uma tentativa falha de traduiz Uma Temporada no Inferno, exalta o poeta destacando a importância de sua obra para a literatura ocidental. Segundo o escritor, os trabalhos de Rimbaud não foram devidamente reconhecidos pela História. Por seu comportamento nada convencional, o jovem rebelde ficou marginalizado e sua poesia desmerecida. Miller se identifica com essa depreciação sofrida por ele e descobre no ídolo fraquezas e dúvidas que os aproximam.

Só agora se começa a compreender o que Rimbaud fez, não só pela poesia, mas pela linguagem. E isso, a meu ver, mais por leitores que por escritores. Ao menos em nosso país. Quase todos os poetas franceses modernos foram influenciados por ele. E de fato, pode-se dizer que a poesia francesa contemporânea tudo lhe deve. Até hoje, porém, ninguém o superou em ousadia e invenção.
(…)
Para mim, poeta é aquele homem capaz de alterar profundamente o mundo. Se houver um poeta desses vivendo entre nós, que se proclame. Que levante a voz! Mas terá que ser uma voz que possa abafar o estrondo da bomba. E que use uma linguagem que derreta corações humanos, que faça borbulhar o sangue.

Dividido em duas partes, “Analogia, afinidades, correlações e repercussões”, e “Quando é que os anjos deixam de se assemelhar?”, o livro explora ao extremo esse caráter de “maldito” compartilhado pelos dois. Mais ainda, Miller vê no poeta um espelho seu.

À medida que a identificação se acentua, o livro se transforma em uma divagação, um monólogo quase sem pausas. Vê em comum a “qualidade confessional” de ambos, o gosto pela linguagem, pela música, e a incapacidade de adaptação a qualquer lugar, o “desenraizamento”.

As reflexões do autor sobre episódios da vida de Rimbaud se misturam a relatos de sua própria, deixando o fluxo de pensamentos se tornar cada vez mais intenso. Miller dedica boa parte do estudo para refletir sobre os anos finais de vida do francês e ao seu ato último, o suicídio. E coube também ressaltar as diferenças entre o escritor e seu ídolo.

Rimbaud trocou a literatura pela vida; fiz o contrário. Ele fugiu das quimeras que tinha criado; eu as aceitei. Temperado pela loucura e desperdício da mera experiência, dei um basta e concentrei minhas energias na criação. Mergulhei no ato de escrever com o mesmo fervor e entusiasmo com que mergulhara na vida.

Sincero e cativante, o livro A Hora dos Assassinos (L&PM) também cumpre um papel que seu autor jamais imaginou: ao mesmo tempo em que revela traços autobiográficos de Henry Miller, ultrapassa a vã tentativa de compreender a temática poética do francês e sua vida perturbada, e se torna um rico e íntimo relato de apego ao enfant terrible que tornou a poesia “perigosa demais”.

Uivo e outros poemas

uivo novoA leitura dramática do poema Uivo, realizada um ano antes de sua publicação, na Six Gallery de San Francisco, virou um dos marcos de início da contracultura americana e rendeu a Allen Ginsberg e seu editor um julgamento por referências pornográficas e a drogas ilícitas.

Apreendido pela polícia americana sob acusação de obscenidade, o livro Uivo e outros poemas é considerado uma das primeiras, e também principais, obras da Geração Beat. Lançado em 1956, conta com seis poemas que versam temas como sexualidade, repressão, religião e amor. Claro, também há inúmeras – e pesadas – críticas aos EUA, muito explícitas em América.

Uivo, o primeiro e mais longo poema, é uma enxurrada de aventuras vividas por Allen e os colegas beats. As viagens, amor livre e experiências alucinógenas do poeta são recriados por cenas fortes, construídas em ritmo tão rápido que soa raivoso. São pouco mais de dez páginas de versos longos, divididos em três partes, em que Ginsberg despeja sobre nós o seu descontentamento com o mundo e com as tradições.

“Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,/ arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa. / (…) que morderam policiais no pescoço e berraram de prazer nos carros presos por não terem cometido outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica, / que uivaram de joelhos no metrô e foram arrancados do telhado sacudindo genitais e manuscritos” (Trecho de Uivo)

Em Sutra do Girassol e Transcrição de música de órgão, o beat mostra um lado espiritual. Já no nome podemos perceber a carga mística incorporada na poesia: Sutras são textos védicos religiosos ou filosóficos. Em ambos, as flores adquirem o caráter de companheiras do poeta solitário, juntamente com Jack Kerouac e as citações de William Blake.

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Ginsberg encontra Walt Whitman entre as prateleiras abarrotadas de produtos em Um Supermercado na Califórnia, fazendo referência ao seu ídolo. Um pequeno poema de duas almas solitárias e atormentadas que se encontram em sonho. Canção, que encerra a obra, é quase delicado, como um suspiro após um grito de sufoco. Doloroso e amargo, nos mostra o autor sob um prisma de solidão latente.

“O peso do mundo/ é o amor./ Sob o fardo/ da solidão,/ sob o fardo/ da insatisfação./ o peso/ o peso que carregamos/ é o amor.”
(Trecho de Canção)

Em pleno controle ideológico decorrente da Guerra Fria, o tom anticapitalista e a espontaneidade do texto de Allen foram mal aceitos pelos críticos conservadores. Porém, a rejeição dos acadêmicos apenas reforçou sua popularidade e caráter de porta-voz, ao lado de Kerouac, da juventude insatisfeita.

Seja por seu delírio e misticismo ou pela linguagem crua e despretensiosa, a poesia de Ginsberg, como anuncia em Sutra do Girassol, é como um sermão nascido para salvar a alma do próprio autor – e das pessoas comuns que elegeram Uivo e outros poemas (L&PM) como uma “bíblia” da desilusão com o mundo.

PS: Essa ediçãoda LP&M inclui também Kaddish e outros poemas e é comentada.

Atualização: para quem quer saber mais da história de Allen Ginsberg e seus companheiros, fiz uma resenha do graphic novel “Os Beats”. É só clicar aqui para ver ;)