Intertextualidade e questões morais

Um dos livros mais consagradas da literatura mundial é também um dos mais controversos. Lolita (Abril Cultural), do russo-americano Vladimir Nabokov, foi taxado de pornográfico e considerado impróprio à época de sua publicação, em 1955, apesar de alcançar um sucesso estrondoso, esgotando edições em diversos países.

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Humbert Humbert, um professor de meia idade – e também nosso narrador -, envolve-se com a pequena Dolores Haze, apelidada de Lolita; sua enteada de 12 anos de idade. Ele mostra saber, durante toda a história, que seus atos são condenáveis, mas busca legitimá-los citando célebres escritores e figuras históricas que se casaram com garotas mais novas, suas próprias Lolitas.

Ele invoca Virgílio, Dante, e muitos outros que, supostamente, experimentaram a mesma atração irresistível e sufocante por meninas na “flor da idade” – se bem que em outra época, quando o casamento com noivas jovens era um hábito aceitável, e muitas vezes até incentivado pelos pais da moça.

O maior exemplo em que Humbert apoia sua defesa, entretanto, ele o faz discretamente em seu discurso, já no início da narração:

Teve, acaso, uma precursora? Sim, teve-a, de fato. Na verdade, bem poderia não ter havido Lolita alguma, não houvesse eu amado, num certo verão, uma certa garotinha inicial. Num principado junto ao mar. Oh, quando? Cerca de tantos anos antes de Lolita ter nascido quantos contava eu naquele verão? Pode-se sempre esperar, de um criminoso, uma prosa de estilo extravagante.

Senhoras e senhores do júri, a prova número um é aquilo que os serafins – os mal informados, simples alados serafins – invejavam. Olhai este emaranhado de espinhos.

Kingdom by the sea, seraphs1 e muitos outros termos são retirados do poema Annabel Lee, de Edgar Allan Poe. Este, um dos mestres de horror e do sobrenatural, casou-se com sua prima de 14 anos de idade, quando tinha pouco mais de 20 anos. Ou seja, fazendo referência ao poema, Humbert faz alusão a seu autor. Há, afinal, jeito melhor de tentar se justificar, mostrando que não foi o único, que, antes dele, homens admiráveis agiram da mesma forma?

Nos versos, Poe descreve um amor tão intenso, tão poderoso que despertou a inveja dos anjos, causando a morte de sua amada.

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino ao pé do mar.2
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor —
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.3

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar…
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

(Tradução de Fernando Pessoa)

Annabel, não por acaso, também era o nome da primeira namorada de Humbert, a “precursora” de Dolores, quando eles ainda eram crianças – I was a child and she was a child4.

Humbert compõe sua defesa – lembrando que ele possui “uma prosa de estilo extravagante”, que utiliza muito sabiamente para nos contar sua versão da história – criando intertextualidades e arranjando argumentos sutilmente, que nos fazem criar empatia, apesar de não concordarmos com sua ações e escolhas.

***

1. “Reino ao pé do mar” e “anjos” na tradução de Fernando Pessoa para o poema; “principado junto ao mar” e “serafins” na tradução do livro de Brenno Silveira (São Paulo: Abril Cultural, 1981).
2. No original: “In a kingdom by the sea,”
3. “With a love that the winged seraphs of Heaven/ Coveted her and me.”
4. “Eu era criança e ela era criança” no poema.

Aniversário :)

recite-29126-1090293975-1yppwfzHoje o Leitura Sabática completa um ano de vida!

Para comemorar, fiz um top5 com os posts mais populares desses 12 meses.

Espero que gostem!

1. Angústia: duas histórias sobre o mar

2. Uma entrevista com Toni Morrison

3. Uivo e outros poemas (resenha)

4. O olfato de Gabito

5. Heteronímia

Heteronímia

O trecho abaixo é retirado de uma carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de janeiro de 1935, época do lançamento de Mensagem. Nela, o poeta conta ao amigo como surgiram Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive (…).
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

(Clique aqui para ler o texto na íntegra)

É interessante notar que Pessoa fala dos três heterônimos partindo de uma autonomia deles, o que acaba por despersonalizar o próprio criador. O poeta “criou em si o seu mestre”, que se mostra mais completo e com características poéticas que, em tese, o próprio Pessoa não possui. E mesmo a justificativa para que eles não apareçam em Mensagem, de que “são mais puros e mais complexos”, demonstra isso.

Mas pode ele colocar em um heterônimo algo que ele mesmo não tem? Como em Álvaro de Campos, em que colocou uma emoção que não concede “nem a si mesmo nem à vida”? Aí percebemos o fenômeno singular que representam essas criações – poetas completos em si, independentes de Fernando Pessoa “ele mesmo”.