2666 (Companhia das Letras) é monumental. Não só no tamanho, que pode afugentar alguns leitores com falta de tempo, mas em sua realização: ficamos presos à trama até a última linha, e lamentamos quando esta chega.
Escrito pelo chileno Roberto Bolaño pouco antes de sua morte, em 2003, foi pensado para sair em cinco volumes (os cinco grande capítulos em que a história é dividida na edição). Mas os herdeiros do escritor, juntamente com o editor, consideraram melhor publicar a obra em volume único. Quando publicado postumamente em 2004, foi amplamente aclamado e teve grandes elogios da crítica, sendo classificado como o melhor livro da carreira do autor de Os detetives selvagens, e como melhor livro daquele ano.
Ao mesmo tempo em que as cinco partes são independentes, totais em seus próprios núcleos narrativos, são conectadas pelo cenário mexicano – Bolaño morou por muitos anos no país -, a atmosfera de violência e a melancolia que atinge alguns dos personagens. E, por isso mesmo (o tamanho descomunal e as tramas autônomas) a resenha vai ser dividida conforme o livro, em cinco volumes.
A parte dos críticos
Quatro críticos literários europeus, especialistas na obra de um recluso escritor alemão, Benno von Archimboldi, veem a amizade entre eles crescendo, com encontros em conferências e eventos de letras. Com a afinidade, nasce um triângulo amoroso entre o espanhol Manuel Espinoza, Liz Norton, britânica fria e objetiva, e Jean-Claude Pelletier, francês um tanto inseguro e sentimental.
Em busca de saber mais sobre a vida de Archimboldi, os três vão para Santa Teresa (que seria o equivalente ficcional de Ciudad Juaréz), no norte do México, seguindo uma pista de que o escritor estaria por alguma razão na cidade. Enquanto isso, o italiano Piero Morini, afastado dos envolvimentos amorosos dos outros – mas, muito mais que isso, afastado por ser considerado pelos outros dois homens como academicamente “menor” -, permanece na própria casa à espera de novidades.
Paralelamente à pesquisa de informações que os levassem ao alemão, com ajuda de Amalfitano, professor de filosofia da universidade local, uma quantidade assustadora assassinatos de mulheres marca a região pelo medo, fato que quase não é notado pelos turistas críticos, mas que será central nas próximas partes. Os quatro formam um pequeno “clube” particular, intransponível, e adotam uma atitude esnobe com qualquer um que se aproxime dos “catedráticos”.
A primeira impressão que os críticos tiveram de Amalfitano foi mais para ruim, perfeitamente e acordo com a mediocridade do lugar, só que o lugar, a extensa cidade no deserto, podia ser visto como algo típico, algo cheio de cor local, mais uma prova da riqueza muitas vezes atroz da paisagem humana, enquanto Amalfitano só podia ser visto como um náufrago, um sujeito descuidado no vestir, um professor inexistente em uma universidade inexistente, o soldado raso de uma batalha perdida de antemão contra a barbárie (…)
A parte de Amalfitano
Seguimos os primeiros meses de Amalfitano, espanhol que vai dar aulas na Universidade de Santa Teresa, na pequena cidade mexicana na fronteira com os Estados Unidos. Infeliz e um tanto confuso, o professor não consegue superar a partida ex-mulher e mãe de sua filha Rebeca, anos antes.
Tentando se manter discreto na novo ambiente, Amalfitano enfrenta, porém, uma série de encontros desastrosos com o filho do reitor da universidade, Marco Antonio Guerra, jovem encrenqueiro e perturbado. Guerra apresenta a mesma visão de uma parcela da sociedade – principalmente com a onda de violência contra mulheres em pleno auge -, de que os mexicanos estão fadados ao fracasso: “Nós, mexicanos, estamos podres, sabia? Todos. Aqui não se salva ninguém.”
O professor está perdido entre o passado e a desilusão com o futuro, e não sabe para onde correr. Os dias passam sem que ele perceba, em uma toada triste que contamina a narrativa.
A parte de Fate
A viagem do americano Oscar Fate à Santa Teresa já começa de um ponto de vista negativo, que o marcará por toda o relato. Com a morte de sua mãe e uma confusão mental que com a qual ele não quer lidar, o jornalista cultural parte à trabalho para cobrir uma luta na cidade por falta do repórter esportivo da redação, e acaba envolvido não só com a história dos assassinatos mas também se vê em um romance um tanto perigoso com uma jovem local.
“Em que momento afundei?”, ele se questiona logo na abertura do capítulo, e a pergunta fica no ar acompanhada de muitas outras, que vêm e vão embora enquanto Fate tenta achar um caminho em busca de si mesmo, e em busca de algo que faça a vida valer ser vivida, algo a que se agarrar.
Aqui também se apresenta a mesma perspectiva de antes, dessa vez proferida por um senhor sentado no restaurante, uma conversa ouvida por Fate.
Vou compartilhar com você três certezas. A: essa sociedade está fora da sociedade, todos, absolutamente todos, são como os antigos cristãos no circo. B: os crimes têm assinaturas diferentes. C: essa cidade parece pujante, parece progredir de alguma maneira, mas o melhor que poderiam fazer é sair uma noite ao deserto e cruzar a fronteira, todos sem exceção, todos, todos.
A parte dos crimes
Sucessivos relatos dos homicídios – a maioria combinada de violência sexual, cujas vítimas são de classes sociais mais baixas, em geral trabalhadoras das fábricas maquiladoras – durante quatro anos, entre 1993 e 1997, constroem o histórico dos assassinatos e nos mostram a dimensão da brutalidade e da impunidade que atingem aquela parte do mundo.
Tomamos parte, também, das investigações da polícia local, que não se mostra muito empenhada em sua função, como percebemos por pequenas dicas que o autor nos dá ao longo do texto. A falta de vontade, ou de interesse, de fazer cessar os assassinatos e descobrir seu autor é tão frustrante que não conseguimos não nos sentir incomodados. E essa não é a única vez que o leitor se vê frente ao desconforto. As piadas machistas dos investigadores, a falta de provas, o jogo de poder… e a violência por si só nos tira do lugar confortável em que nos encontramos e nos joga na realidade de 2666.
A alternância entre os crimes, listados em uma linguagem objetiva e jornalística, e a visão de alguns agentes da polícia, os indiciados e a vida na cadeia, além de Florita Almada, uma senhora considerada vidente que aparece ocasionalmente na televisão, quebra algum possível cansaço causado pela quantidade de boletins policiais sobre as jovens mortas, e mantém o interesse em desvendar o que há por trás dos homicídios e a verdadeira culpa de um dos poucos suspeitos presos, Klaus Haas.
A parte de Archimboldi
Hans Reiter, alemão de proporções gigantescas e de família pobre, parte para lutar na Segunda Guerra Mundial. Durante uma inspeção a uma casa desocupada, em uma vila ucraniana, encontra o diário de um escritor chamado Boris Ansky. Com a leitura, cria um vínculo sentimental com o desconhecido, possivelmente já morto, e enxerga a vida por seus olhos. Ansky se torna seu companheiro, em um momento de isolamento humano e falta de esperança.
A literatura é assunto pulsante nessa parte final, se misturando não só à violência e à solidão da guerra, mas despertando ambições literárias em Reiter. O destino final do jovem vai se revelando conforme o passar dos anos, até a conexão final com os assassinatos em Santa Teresa e o resto da trama que compõe o conjunto de 2666.
Pendurar uma panela com água ou pôr o samovar junto dos tições se mostrava uma tarefa impossível, de modo que finalmente concluiu que quem havia construído o esconderijo o fez pensando que alguém, um dia, se esconderia e outra pessoa o ajudaria a se esconder. O que salva, pensou Reiter, e o que o salva. O que viverá e o que morrerá. O que fugirá quando cair a noite e o que ficará e se tornará vítima. Às vezes, de tarde, se enfiava no esconderijo, armado somente com os papéis de Boris Ansky e uma vela, e ficava ali até alta noite, até ficar com cãibra em seus músculos e com o corpo gelado, lendo, lendo.
***
Considerado o nome mais importante da literatura latino-americana desde Gabriel García Márquez, Bolaño criou uma obra de interligações e suspensões. Acompanhamos passo a passo o desenrolar da trama, sempre querendo mais, e cada vez mais perdidos em um labirinto de acontecimentos, autoenganos e pistas recolhidas: nos cabe desvendar os detalhes escondidos e outros discretamente colocados durante o texto, que facilmente passam desapercebidos a olhos desatentos.
O ritmo é rápido, graças aos trechos curtos que compõe cada parte e que vão ora criando contrapontos entre diferentes personagens, ora segurando nossa ansiedade por mais peças que possam nos encaminhar para uma compreensão, e montar o quebra-cabeças por inteiro.
Sobre o número que dá nome ao livro, Ignacio Echevarría lembra, na nota sobre a primeira edição, uma referência a outra obra de Bolaño. Um trecho de Amuleto (Companhia das Letras) em que Auxilio Lacouture, seguindo Arturo Belano, afirma que “a [Avenida] Guerrero, a essa hora, se parece mais que tudo com um cemitério, mas não com um cemitério de 1974, nem com um cemitério de 1968, nem com cemitério de 1975, mas com um cemitério do ano de 2666, um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo.”